segunda-feira, 22 de junho de 2009

O Roubo do Rádio Relógio

Moravam meus pais e eu, numa casa antiga, de corredor longo, quartos grandes, e barulhos noturnos. Os anos iam por volta de 1960, quando ainda eu não era avô. E as crianças gostavam de brincar nas ruas de Salvador, subindo e descendo no velho plano inclinado.

Certa noite, verão quente que crescia, meus pais foram ao cinema, e recomendaram dormir, sem fazer birra ou manha. Medo eu não tinha, mas se soubesse do que viria, choraria pois, a ocasião carecia de fato. Entrei pé a pé, fechando o cadeado grande do portão da rua, correndo pelo corredor longo e jogando-me na cama, debaixo do mosqueteiro velho.

A vela que mamãe deixara acesa, o vento de minha corrida já havia apagado. Ficou apenas eu e o breu da noite, e as sombras de monstro de minha imaginação. Fechei os olhos e tapei-me a cara. Agora era eu, e o silêncio barulhento dos sopros do ocaso.

E de repente pareceu-me gatos no telhado, correndo por toda casa. Gritar eu quis, mas não gritei, tremi o corpo e rezei um Creio Em Deus Pai. Da sala, desceu o barulho na cadeira-de-balanço, roncando velha nos ladrilhos de madeira. Estatelei! Valha-me meu Senhor Jesus, minha Nossa Senhora.

Foi num segundo, que do medo fiz coragem, saltei da cama feito lobo virado e respirei fundo sem ruído. Ia encarar o que fosse, pois menino homem eu já era quase, e valia-me uma aventura na madrugada. Fui até a sala. Pela luz que entrava da avenida la fora, vi o homem grande, de olhos arregalados e roupas suadas, esticando o braço para o rádio-relógio de papai.

Nós dois nos olhando assustados, quando os segundos parecem não ter mais fim, gritei! “Ladrão!”. E ele voltou por onde veio, feito Papai Noel no natal, fugindo pela chaminé, ele subiu na cadeira de balanço e fugiu por entre as telhas velhas do casarão. Continuei em pé na sala, cai no riso, e voltei para cama. Antes de chegar la, meus pais já estavam abrindo o portão la fora.

Contei o caso, mostrei o furo no teto, resolveram perguntar aos vizinhos, mas ninguém tinha visto nada, até mesmo o pescador que passava aquela altura da noite, com seu balaio na cabeça, e seus pés sujos de lama. Sujos de lama!

Chamei papai, mas ele não ouvia entretido conversando com os outros homens da vizinhança, não via que o pescador já era então o ladrão noturno. Seus pés de lama que ficaram gravados no chão da nossa sala, e na cadeira de balanço, denunciavam o gatuno. Precisa eu então, agora homenzinho, fazer alguma coisa.

Calcei as chinelas surradas, de subir e descer a ladeira, e fui cair la na feira da Água de Meninos. Perguntei por quem tinha visto o rádio-relógio, mas ninguém deu noticia do velho. Foi quando eu vi no balaio do pescador enlameado, o ladrão, a ponta do radio pulando pra fora, como quem grita “estou aqui, veja!”. Quando me abaixei para agarrá-lo e correr para casa, aquela mão grande e pesada juntou-se com a voz rouca do dono do bar, e veio também o ar quente com cheiro de pinga, me deixou empapuçado e quase bêbado... Prendi a respiração.

“Larga isso menino, é do peixeiro ali, meu freguês no bar”. Então voltei no rastro de minhas pegadas, ladeira à cima, até a casa de papai. Que já tinha chamado o guarda na pracinha, para averiguar o ocorrido. Notaram então as pegadas de lama, e foi minha vez de ser policial, contando de minha coragem la em baixo na feira. Papai sabia que sério eu estava, não mentiria com cousa tão real e grave. Foram atrás do pescador, e do balaio, trouxeram de volta nosso rádio-rológio, e eu poderia então, ouvir a rádio novela, comendo os bolinhos de peixe que mamãe fazia todo fim de tarde.